Quem detém a chave da memória? A quem é concedido o direito de narrar a história? Quem persiste para compartilhar seu relato? Estas indagações impulsionaram a criação do “Arquivo Transformista”, um repositório digital público dedicado a preservar registros inéditos de artistas trans e travestis que moldaram a cena cultural paulistana.

Idealizado pelo Acervo Bajubá, uma iniciativa comunitária empenhada em documentar as memórias das comunidades LGBT+ brasileiras, o Arquivo Transformista apresenta uma coleção de 250 fotografias que retratam cinco artistas com mais de cinco décadas de vida: Aloma Divina, Kelly Cunha, Gretta Starr, Marcinha do Corintho e Victoria Principal.

As imagens selecionadas, datadas principalmente das décadas de 1970 e 1980, revelam um período marcado pela repressão da ditadura militar, durante o qual a comunidade LGBT+ enfrentou perseguição, violência, censura e invisibilidade por parte do Estado.

O acervo documenta apresentações em casas noturnas emblemáticas de São Paulo, como Medieval, Boate Corintho, Nostro Mondo e Freedom, todas já extintas. Além disso, o projeto apresenta registros das artistas em eventos como as Paradas do Orgulho LGBT+, o carnaval e concursos de beleza, bem como experiências de trabalho no exterior e aspectos de suas vidas fora dos palcos.

Angel Natan, pesquisadora e coordenadora do projeto, enfatiza que o Arquivo Transformista visa preencher uma lacuna resultante da ausência de registros institucionais sobre a história trans e travesti no país. Segundo Natan, gays e lésbicas conquistaram maior aceitação social e institucionalização de suas histórias em comparação com as travestis e trans, um processo que ela denomina “violência arquivística”.

A falta de memória registrada, de acordo com a pesquisadora, está intrinsecamente ligada à estigmatização da comunidade trans, frequentemente associada à violência ou ao trabalho sexual. O Arquivo Transformista busca romper com esses estereótipos, destacando a contribuição dessas artistas para a formação cultural e artística, os movimentos históricos e a luta por direitos.

Para Natan, o acervo reconhece essas trajetórias e reforça seu valor histórico: “É a memória em um arquivo vivo, e o arquivo vivo são essas mulheres, essas artistas que estão vivas”. A criação do arquivo representa um ato de reconhecimento coletivo e um registro do legado dessas artistas para inspirar as novas gerações: “Sem reconhecer o passado, não existe futuro”.

Entre as artistas retratadas no Arquivo Transformista está Gretta Salgado Silveira, conhecida como Gretta Starr, uma figura emblemática da cena transformista paulistana, ativa até hoje. Gretta ressalta que travestis e mulheres trans estiveram na vanguarda, abrindo caminho para a conquista de direitos por gays e lésbicas.

A violência e o exílio forçado de muitas travestis durante e após a ditadura deixaram marcas profundas, inclusive na própria memória da comunidade, resultando na perda de parte dessa história. Gretta vê no Arquivo Transformista uma forma de reparar essa ausência e garantir que sua trajetória e a de tantas outras não sejam apagadas.

O Acervo Bajubá almeja expandir o Arquivo Transformista, capacitando as próprias artistas para atuarem na preservação de suas memórias, e espera levar o projeto para o Rio de Janeiro e outras regiões do país, onde residem outras importantes artistas da primeira geração.

Fonte: g1.globo.com

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